quarta-feira, setembro 21, 2011

Conquista

"Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!"

"Conquista" de Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'





Livres não somos porque condicionados pelo que nos rodeia. Mas o impulso é nosso. A sede é nossa. O medo de nos afirmarmos tem de ser vencido por nós.

E assim crescer. Limitarmo-nos a flutuar até nos afogarmos na mediocridade seria mais fácil e, por paradoxal que soe, reconfortante. Para nós e para muitos dos que nos rodeiam.

Mergulhar num mar que molha o nosso corpo pela primeira vez é sempre assustador. O céu abre-se sem desvendar o tom que irá marcar o novo trilho. O som é confuso mas simultaneamente silencioso.

Mergulha. Abraça a espuma e luta com o mar que te recebe. Submerge e volta a emergir.

Este é um novo ciclo e uma camada de pele sobrevém lentamente. Até que um novo Mar seja descoberto.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Ceptro


A chuva atravessa a cidade num sussurro, envolta em fumo e acompanhada por uma banda sonora metálica.

Os transeuntes embarcam numa corrida sincronizada para escapar à inevitabilidade e amontoam-se nos semáforos amarelos e vermelhos, pausa regulamentar.

No entanto, a cidade cinzenta cobre-se agora de ceptros em tons de amarelo, vermelho e rosa. Alguns transportam marcos lilases e laranjas. Outros um mero jornal e um olhar indiferente.

Eu transporto comigo o mais pleno dos sorrisos e, não obstante as gabardines cinzentas que me rodeiam , a minha cara ganha cor e ilumina o cenário que se desenha quando te encontro, luminosa e honorífica.

E de uma vista aérea os nossos corpos confundem-se e alimentam a cidade chuvosa que nos teima em pôr à prova. A cidade ganha vida neste dia que não é mais que uma desculpa para celebrar o meu amor. O teu amor.

E a chuva continua a cair na cidade viva de luzes e sons intermitentes.

quinta-feira, novembro 04, 2010

No Communication



Ou nas palavras do poeta e jornalista brasileiro Mário Quintana, "com o tempo não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros."

Ouçamo-nos então.

sábado, outubro 23, 2010

The Rope



The Rope - Prémio de Melhor Curta-Metragem no Festival de Cinema de Seattle em 2005.


A câmara de Philippe Andrê filma sublimemente as cordas que nos amarram (e se impõem) no nosso devir.

A dureza do amor, o peso que suportamos do outro, sem termos as mais das vezes, espaço para escolha.

É confortável atar-nos uns aos outros na esperança que nos carreguem, que nos façam avançar. Na esperança de sermos intocáveis perante a solidão.

Todavia, as nossas escolham ganham vida própria e acorrentam-nos com violência, impedindo-nos de respirar, de escolher o nosso caminho, de existirmos totalmente.

A esperança reside em descobrir, no turbilhão que turva a individualidade, que podemos existir juntos, de mão dada, lutando contra todos os perigos que invariavelmente se abatem sobre nós.

Escolhendo livremente cordas passíveis de se desatarem sempre que queimem a pele para lá do que é a dureza do caminho.

segunda-feira, outubro 18, 2010

The Golden Age



Há dias em que só faz sentido conduzir sem parar, sentir o sol reflectido através do vidro e o vento na cara.

Somos livres.

domingo, outubro 17, 2010

Os Segredos nos seus Olhos

"He ran to the end of the train and watched as her figure, once gigantic, now shrank in his eyes, but grew more than ever in his heart. "

Benjamin Esposito, in "The Secret in Their Eyes"





Somos educados para a rigidez de sentimentos. Bombardeados por catálogos que nos dizem o que podemos sentir na estação da vida que atravessamos, como que avisando para os seguros constrangimentos de andar descoordenado com as tendências dominantes.

Neste jogo pré-preenchido tendemos a esquecer os segredos que se escondem no nosso olhar, no olhar daqueles com quem nos cruzamos, obliterando qualquer hipótese de nos ligarmos. Caminhamos demasiadas vezes com o olhar parado, sem correr riscos, ignorando sensações viscerais em troca de uma falsa sensação de domínio e conforto.

O que fica no meio de tudo isto? A condenação a viver no passado e a repisar interna e subrepticiamente as oportunidades perdidas em troca de um vazio, tão confortável nas suas grilhetas feitas em série, a combinar com as vidas de catálogo de tantas cópias de pessoas que por aqui circulam. O paradigma do sentimento de pertença como veículo de infelicidade normalizada e docemente dormente.

Não. Eu não quero ter de chocar com alguém para ter a certeza que estou vivo. Não. Eu rejeito este catálogo, já lá vivi, aprisionado e viciado no controlo que me permitia ter, inebriado pelo reconhecimento exógeno de algo que devia permanecer intrinsecamente selado e bacteriologicamente puro.

Ao invés, quero atingir aquele nível de fragilidade em que estou permeável à beleza inesperada e despida da vida, à absorção de tudo o que signifique algo, por muito singelo que seja. Aquele ponto em que sou capaz de estabelecer uma verdadeira troca com alguém de carne e osso, com contradições, receios e vida a correr-lhe nas veias. Aquele cenário onde as defesas estão em baixo e não temos vergonha de tocar os outros.

Deixar algo de nós em outrem, construir algo, marcar e ser marcado. Ser e não simplesmente existir.

Esta é a meta que cada vez mais optamos por descurar.

Não mais. Hoje não.

terça-feira, outubro 12, 2010

Cassius Clay


"I feel like a porcupine sleeping in a waterbed. It's fantastic to feel beautiful again."

In "Cassius Clay", The Wave Pictures

domingo, outubro 10, 2010

Árvores Dançantes em F menor

Hiroshi Nakamura


Troveja, o chão fervilha por entre a chuva e a pressão do alcatrão. Vejo árvores a esvoaçar à frente dos meus olhos e a velocidade do meu caminho não permite que as identifique ou distinga.

O som da impassível realidade ainda ecoa. O constrangimento perante a inexorabilidade do destino traçado e o olhar impotente trocado ainda queima o presente.

Encerra-se um capítulo, levantam-se fileiras, recontam-se espingardas e percebe-se que a guerra nunca passou sequer da sala de estratégia. Uma das partes nunca teve intenção de a ganhar. Nunca foi firme, nunca ousou.

Lá fora, o céu começou entretanto a ceder. Ironicamente, permitiu que alguns raios de sol fugissem, instalando uma falsa sensação de paz.

Escolhas. Sonhar ou quebrar.

segunda-feira, outubro 04, 2010

A superfície

"To be nobody but yourself in a world which is doing its best, night and day, to make you everybody else means to fight the hardest battle which any human being can fight; and never stop fighting."

E.E. Cummings


O peso dos costumes e trends deixa-me, por vezes, sonegado.

Tenho vontade de ultrapassar a superfície onde habita o conformismo acrítico e voltar a respirar livremente.


Ser cru, genuíno, dizer o que penso, omitir o que penso por mero tacto e não por pressão, gritar, rir, um rir vivo e sentido.

Cada vez mais é difícil fugir a este ciclo que nos oprime e nos força.

Como resposta, este mundo inventou algo tão genial quanto tortuoso: a rebeldia pré-concebida e instantânea. Observo muita rebeldia ordenada e contida, pertencendo a cânones tão ou mais rígidos e catalogadores do que aqueles que querem combater.

Perante este paradoxo não posso deixar de sorrir e continuar a tentar furar a superfície. O ar puro é alcançável.

segunda-feira, setembro 27, 2010

O outono da cidade




Chega o Outono à cidade, vejo-o através da janela do meu esconderijo diurno.

Embalado pelo ríspido latejar das janelas, sinto uma incontrolável vontade de o abraçar, um entusiasmo quase pueril que me apressa em transpor a porta de segurança para a rua.

Caminho com um sorriso fixado que não sei explicar mas que me limito a saborear. Observo o que me rodeia.

O frio envolve lentamente Lisboa por entre as esquinas de cada avenida, por entre o fumegar de um cigarro e o entrelaçar de um cachecol improvisado. O escurecer tem outro peso, anunciando o fim do dia com gravidade, acordando-nos para o mundo que vive lá fora, mais luminoso mas também mais discreto atento o maior peso de cada movimento, escolhido sob um critério apertado e exigente.

Vejo almas jovens, rotinas robotizadas, andares decididos e passos perdidos. A boca de uma mulher de meia-idade trava um solilóquio improvisado num banal café, inalando lentamente um cigarro. Esta imagem prende a minha atenção enquanto sigo focado no meu destino.

Estas são as imagens que esta cidade alimenta, devoradora nos seus sentidos, manipuladora no seu querer. Esta cidade faz-nos querer chamá-la de nossa, de lhe sentir a vertigem. O seu canto não nos deixa indiferente, nem aos mortos-vivos que nela abundam como a mulher amorfa que vi. A cidade, caprichosa, devolveu-lhe ingloriamente todos os desejos e expectativas que nela havia depositado, lançando, sem pudor, a seta da frustração e desilusão.

Vislumbrei outros rostos que reflectiam sucesso, luta e glória mas tenho de confessar que continuo sem conseguir esquecer a beleza melancólica daquele bafejar dorido e lento...

O Outono chegou à cidade.